O jovem de 92 anos e a mulher que empunhava o <i>Avante!</i>

Modesto Navarro

Pa­recia que an­dava a pas­sear. Chegou à es­tação dos barcos para o Cais do Sodré, em Ca­ci­lhas, e olhou toda a gente com von­tade de con­versar e viver.

Havia uma mu­lher à es­pera do ca­ci­lheiro que lia aten­ta­mente um jornal. Me­lhor di­zendo, em­pu­nhava o Avante!. Então, ele sentou-se ao lado dela e disse:

- Vim dar uma volta a Al­mada. Es­tive lá em cima, no Pragal, e desci por aí, até à Lis­nave. Há muitos anos, dava-me com ra­pazes da cor­tiça, ope­rá­rios das fá­bricas que já de­sa­pa­re­ceram.

- Ah sim?! – res­pondeu a mu­lher. – E que tal eram eles?

- Malta boa, que tra­ba­lhava muito e so­fria. Por isso lu­tava con­nosco. Eu era ope­rário em Al­cân­tara. Tí­nhamos en­con­tros, con­ví­vios, cá e lá, em­bora fosse di­fícil atra­vessar o rio.

Não se co­nhe­ciam, o homem e a mu­lher, mas já eram amigos e ca­ma­radas há muitos anos.

- Estás com boas lei­turas – disse ele.

Um sor­riso claro, no rosto mar­cado pelo tempo, mas vol­tado para a frente.

- Temos de saber o que se passa, não é? – disse a mu­lher. - Ver as lutas, as no­tí­cias do país e do mundo.

- Re­ce­bíamos o Avante! nas ofi­cinas e nas fá­bricas. Eu era ope­rário e vi a re­volta dos ma­ri­nheiros no Tejo. As ba­te­rias de terra bom­bar­de­aram os na­vios. De­pois, a GNR e os fas­cistas cer­caram-nos, quando che­garam ao cais, e le­varam-nos presos.

- Foram para o Tar­rafal – disse a mu­lher.

Po­deria dizer que muitos foram mortos no campo de con­cen­tração e ou­tros ainda vol­taram e pas­saram a vida a lutar, antes e de­pois do 25 de Abril. João Faria Borda foi nosso mestre, na apren­di­zagem das lutas desde 1969, na co­o­pe­ra­tiva Tra­ba­lha­dores de Por­tugal e em Campo de Ou­rique. Quando es­tá­vamos nas reu­niões, na base da CDE, apa­re­ciam uns teó­ricos, como Ferro Ro­dri­gues, e que­riam en­sinar-nos a ser re­vo­lu­ci­o­ná­rios na con­versa, em dis­cursos de duas horas que eles que­riam fazer, mas que não dei­xá­vamos.

- Está bem… Está tudo muito bem, amigos – era João Faria Borda que in­ter­rompia esses in­te­li­gen­tís­simos seres que pe­ro­ravam. – Mas o que vamos fazer amanhã? Fa­zemos agi­tação contra o custo de vida nos mer­cados aqui do bairro e de Al­cân­tara? Vamos para as portas das fá­bricas, falar com os tra­ba­lha­dores?

O homem sen­tado ao lado da mu­lher, à es­pera do ca­ci­lheiro, disse que an­dava a ver como es­tavam as coisas. Viera até Al­mada e agora ia para Lisboa.

- Estás a ler o Avante! que saiu hoje. Chego a Al­cân­tara e passo pelo centro de tra­balho, a comprá-lo para o ler em casa.

A tarde es­tava lu­mi­nosa e eles atra­ves­saram o rio juntos, na con­versa. A mu­lher ria, en­can­tada com aquela ju­ven­tude do com­pa­nheiro de vi­agem, que não perdia a opor­tu­ni­dade de falar com as pes­soas.

- Tenho no­venta e dois anos e co­meço a ter pena de largar isto. Não é que a vida es­teja boa, antes pelo con­trário. Mas, en­quanto cá es­ti­vermos, há que falar e fazer tra­balho para re­solver os as­suntos.

- Também acho – res­pondeu a mu­lher que em­pu­nhava o Avante!, a meio do Tejo. E a tarde ardia nos seus olhos, na ami­zade e na ca­ma­ra­dagem que os jun­tava no ca­ci­lheiro e na vida de co­mu­nistas que as­su­miam.

 



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